sábado, julho 15, 2006

um certo jantar


Era abril, uma quarta-feira qualquer, uns três anos atrás. Dois dias antes, ele tinha me ligado. Ele é o homem por quem tive uma paixão louca, de fazer suspirar, correspondida de forma tímida e estranha, de sua própria maneira. Ele me ligou para dizer que viajaria para São Paulo e que na sua volta, na tal quarta-feira, queria jantar comigo. Queria um jantar especial. Queria que eu fizesse o jantar, porque só assim seria feito com carinho. Havia, e ainda há, apenas um pequeno detalhe: meus dons culinários se extendem até o chá e só. Ele sabia disso e tenho certeza que queria ver como eu reagiria.

Acho que os homens não têm noção do que as mulheres são capazes quando estão apaixonadas...

Há mais alguns detalhes que devem ser mencionados. Eu havia sofrido um acidente há duas semanas e tinha que ir ao hospital verificar os pontos na minha perna direita naquela mesma noite. Infelizmente os pontos não puderam ser retirados e tive que continuar remendada... Auto-apelido: Emília.

Voltando ao telefonema. Desliguei e na mesma hora comecei a navegar por sites de delivery e os cardápios dos restaurantes. Queria servir Pato a Pequim. Me lembrei que a Dani adorava um restaurante chinês na Tijuca. Bati o telefone pra ela. Nervosíssima.

- Dani, ele me ligou para jantar. Estou com os nervos à flor da pele. Me dá o telefone do tal chinês.

Liguei. Eles só serviam porção para seis pessoas. Plano A foi por água abaixo. Parti para o Plano B: escolher dentre os restaurantes do Leblon, uma comida marcante pela sofisticação e, para mim, dificuldade de preparo. Afinal, eu havia sido desafiada. Achei: maigret de pato, com purê de maçã e arroz de fines herbes. Precisávamos de uma entrada: salada de alcachofra com nozes e queijo brie.

Encomendei com algumas horas de antecedência para garantir que nada daria errado. Tudo cronometrado: eu sairia do trabalho, passaria no hospital, depois compraria um assortiment de sobremesas no Ateliê Culinário (ele adora doces) e uns vinhos no Garcia & Rodrigues. Tinto, ele gosta mais de tinto seco, se possível Pinot Noir... Chegaria em casa, sujaria umas panelas (antes eu precisaria decobrir onde estavam naquele território hostil que é a minha cozinha), um CD de blues de edição limitada e out of print, perfume, decote. Pronto! Perfeito! Tudo sairia perfeito!

O combinado tinha sido que ele, ao pegar o vôo em SP, me telefonaria para eu ter uma noção de seus horários. Ele morava, e ainda mora, há dois quarteirões daqui. Percebi que havia um potencial de tudo dar errado (ah, porque nessas horas todas as nossas superstições vêm à tona ao menor sinal de problema - tipo Copa do Mundo, saca?) quando o médico disse que ainda não poderia tirar os 23 pontos da minha canela. Pronto! Começou o efeito borboleta. Quer ver?

Peguei um táxi (estava proibida de dirigir com os pontos) até o Ateliê Culinário. Comprei as sobremesas escolhidas a dedo. Passei no Garcia & Rodrigues para comprar os vinhos. Cheguei em casa junto com o pato. Subi, enfiei a chave na porta e quem disse que a porta abria? E quem disse que eu tinha o telefone do chaveiro aqui do Leblon à mão? Deixei tudo no elevador. Corri até a esquina onde ficava o chaveiro (detalhe: eu também estava proibida de correr com os pontos). Ele teve que trocar tudo e demoraria uma meia-hora. Entrei em casa! Ufa! Ao abrir as embalagens do delivery, descobri que faltava um pato. Liguei para o restaurante.

- Margareth (até hoje lembro do nome da infeliz), você esqueceu de me mandar um pato.
- Dona Maria (odeio quando me chamam de dona Maria), o chef disse que mandou e que não tem nada a ver com o fato d'a senhora ter perdido o pato.
- Eu não perdi o pato! O pato é que esqueceu de vir! Mande outro, por favor.
- O chef não vai fazer outro. (quase chorei nessa hora - íamos acabar comendo pizza, meu deus!)
- Chama o gerente!

Bom, o gerente resolveu tudo como deveria. Fiquei tão nervosa que liguei para a Dani já com os olhos cheios de lágrimas, desesperada. O mundo estava desabando! E o chaveiro olhando pra mim como se eu fosse uma louca fora de controle. A Dani, coitada, também com sua cota de ansiedade em alta (a adorável Pimenta estava dando à luz a uma ninhada de três naquela noite) ainda conseguia me consolar, mas não teve sucesso com as minhas superstições.

O telefone toca. É ele. Chegou. Está indo pra casa tomar um banho. Então só tenho no máximo uma hora para:
- o chaveiro ir embora;
- o pato chegar;
- botar o vinho para resfriar;
- decorar os pratos;
- sujar as panelas;
- achar o CD perfeito;
- tomar banho.

Não vou conseguir! Ligo pra Dani de novo. Ela me acalma, de novo. Fui tomar banho e deixei o chaveiro lá. Tranquei a porta do quarto. Movimento instintivo sem o menor valor porque o cara é um chaveiro e se ele for um tarado, nada vai impedi-lo de entrar. Me dê um desconto, por favor: eu estava fora de mim. Experimentei várias roupas até o chaveiro me garantir que estava bom. Ele foi embora. Procurei o CD e nada! Liguei pra Dani.

- Mary, respira fundo. Agora abre a gaveta. Ela não está arrumada em ordem alfabética? (meu lado virginiano gritando). Então? Agora olha CD por CD. Calma. Não esqueça de respirar. Achou? Viu? Agora relaxa. Toma uma whisky.

Toca o interfone e eu ainda no telefone com a Dani.

- Dani, não sei se é o pato ou o cara! Tô perdida! Meu jantar está arruinado!

Era o pato. Ufa! Botei o vinho para resfriar, decorei os pratos e sujei as panelas.

A campainha tocou novamente. Era ele. O resto eu não vou contar, não.

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